terça-feira, 18 de outubro de 2016

CONFISSÕES DO CREMATÓRIO, de Caitlin Doughty, ou “Lições de vida, com a professora morte.”




Por EDUARDO CRUZ




O grande triunfo (ou tragédia horrível, dependendo de como você encara) de ser humano é que nosso cérebro evoluiu ao longo de centenas de milhares de anos para compreender nossa mortalidade. Infelizmente, somos criaturas conscientes. Mesmo que passemos o dia encontrando jeitos criativos de negar nossa mortalidade, por mais poderosos, amados e especiais que nos sintamos, sabemos que estamos fadados à morte e à decomposição. Esse é um peso mental compartilhado por poucas e preciosas espécies na Terra.

Todos temos nossos macetes de profissão, seja ela qual for. Os jargões específicos, línguas estranhas para outros mortais (outro dia, em uma conversa de boteco, testemunhei a um papo entre dois amigos que trabalham em farmácia destilando jargões do meio. Rapaz, como boiei!), suas rotinas de procedimentos no trabalho, aquela tranqüilidade que se alcança depois de se adquirir certa experiência. Em algumas áreas pode ser mais fácil que outras para se atingir esse patamar de profissional experimentado, mas tenho certeza que para Caitlin Doughty não foi moleza: a autora, que trabalhou durante cerca de 6 anos em uma casa funerária na Califórnia, não se limitou a escrever apenas sobre suas experiências na indústria funerária, sobre como barbear cadáveres, como usar o forno crematório, como embalsamar bebês, etc. Caitlin Doughty fez uma profunda incursão acerca de como a morte e os rituais fúnebres são vistos e entendidos em diversas culturas. Permeado de um humor muito sutil e inteligente e cheio de relatos interessantíssimos e repleto de reflexões. “Confissões do crematório” é o primeiro livro do selo Dark Crush, a linha de livros de não ficção da editora Darkside Books. 

“Embora você possa nunca ter ido a um enterro, dois humanos do planeta morrem por segundo. Oito no tempo que você levou para ler essa frase. Agora, estamos em quatorze.”

Mas aí você vai torcer o nariz e me dizer: “Livro de youtuber? Que merda!”. Sim, uma youtuber, mas com algo a dizer, amiguinhos, o que entre o cada vez mais crescente número de canais do site, é algo raro, convenhamos. Afinal, quantos livros você tem em sua estante que expliquem com detalhes o que vão fazer com você assim que você se transformar em um bloco de carne em decomposição?

Caitlin Doughty
“Confissões do crematório”, mais do que simplesmente descortinar os bastidores da indústria funerária estadunindense, também traz curiosidades e reflexões a respeito da morte e seus temas periféricos, como tradições funerárias de outros povos, curiosidades e fatos históricos, mitológicos e filosóficos. Tudo com muito bom humor e sem perder o respeito pelo tema. Interessante também foi constatar com a leitura desse livro que a medicina moderna, além da medicalização do parto, criou também a medicalização da morte: da mesma forma que a medicina retirou o parto das parteiras e de dentro dos domicílios, o momento de falecimento de um ser humano, que costumava ser em sua própria cama, cercado pela família também foi substituído pela assepsia dos quartos hospitalares. Num futuro bem próximo, se depender de nossos parlamentares, até tatuagens vão passar por este processo de medicalização. Mais um processo humano milenar perdido para as demandas comerciais e o status quo da saúde como forma de comércio, mas isso é papo pra outro post....

“Podemos nos esforçar para jogar a morte para escanteio, guardando cadáveres atrás de portas de aço inoxidável e enfiando os doentes e moribundos em quartos de hospital. Escondemos a morte com tanta habilidade que quase daria para acreditar que somos a primeira geração de imortais. Mas não somos. Vamos todos morrer e sabemos disso.


O título original do livro (Smoke gets in your eyes)

Em nossa cultura ocidental contemporânea, somos doutrinados a crer que nossa obrigação é vencer na vida (seja lá o que isso signifique...), vencer a competição e acumular mais riqueza que seu amiguinho, e nesses moldes de pensamento, morrer faz de você o loser supremo. As pessoas se cercam de toda sorte de distrações e ilusões para não encarar a realidade de um processo absolutamente natural de nosso ciclo de vida, tão natural quanto nascer. Parece que nessa época de cultura de massa, o medo da morte acabou degenerando para uma histeria em massa. A postura a ser adotada pela maioria das pessoas é “não pensar a respeito NUNCA!”. Mas, sejamos sinceros: quanto tempo uma pessoa consegue evitar pensar a respeito da morte, até ela meter o pé na porta e se fazer notar, seja com a perda de um bicho de estimação, um amigo, um parente? Essa é uma atitude contraproducente, e iniciativas como o “Confissões do crematório” são excelentes para ajudar a transformar esse senso comum. Pondo de lado julgamentos, encarar a própria mortalidade não é fácil para algumas mentes. A morte é o grande equalizador: ricos pobres, homens, mulheres, crianças.... no final todos sucumbem à essa realidades inescapável, então porque insistimos em fugir da realidade? Podemos inferir, fácil, que essa é uma das maiores causas de sofrimento da humanidade.
Normalmente eu não cito a bíblia nunca, por medo de sofrer uma combustão espontânea, mas pela primeira vez concordamos numa coisa: existe um tempo para nascer, e um tempo para morrer.

Só faltou mesmo um prefácio dessa menina aqui...


“Nunca é cedo demais para começar a pensar na própria morte e na morte das pessoas que você ama […] Aceitar a morte não quer dizer que você não ficar arrasado quando alguém que você ama morrer. Quer dizer que você vai ser capaz de se concentrar na sua dor sem o peso de questões existenciais maiores como “Por que as pessoas morrem?” e “Por que isto está acontecendo comigo?”. A morte não está acontecendo com você. Está acontecendo com todo mundo” 

Não posso deixar de elogiar a parte gráfica do projeto, mas isso está ficando chato. A coisa mais lugar comum no mercado editorial nacional atualmente é elogiar o alto padrão gráfico que a Darkside Books dispensa às suas publicações, o capricho e atenção esquizofrênica aos detalhes, à capa, à arte interna. Façam uma capa feia pra variar um pouco, pessoal! rsrsrsrs




Se você não quer nunca, jamais pensar sobre sua própria mortalidade, ou não quer quebrar os óculos cor de rosa que usa para enxergar a vida, passe longe desse livro. Agora, se você tem estômago para encarar verdades incômodas, siga em frente, e cresça um pouquinho com ajuda dessa dor de ser mortal, de se perceber mortal. No final das contas, não espere nenhuma revelação ou verdade absoluta do “Confissões...” sobre o que reside além do véu da morte. Essa dúvida pertence tanto a nós quanto à autora, e esse livro não promete respostas prontas, como o livro de auto ajuda da semana, só o que ele faz é nos pegar pela mão e nos conduzir por essas reflexões do lado de cá do forno crematório que, mesmo dolorosas, precisam ser ponderadas em algum momento da vida, e que abandonemos o medo e a irracionalidade que ele acarreta, e em silêncio aprendamos com a morte, e a tratemos não com banalidade, mas com naturalidade. Porque a morte está logo ali, virando a esquina, como Raulzito já cantou:







"Somos animais glorificados que comem, cagam e estão fadados a morrer. Não somos nada mais do que futuros cadáveres."


PS.: Tudo bem não se abalar com a morte, mas se sentir borboletas voando em seu estômago e um aumento de fluxo sanguíneo da região pélvica ao assistir a filmes como Nekromantik e Aftermath, procure ajuda pra ontem, amiguinho(a)!

 Aftermath, de Nacho Cerda (1994)



Nekromantik, de Jorg Buttgereit (1987)



FUI! Até +!!!!








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