quarta-feira, 31 de maio de 2017

SOBREVIVENTE, de Chuck Palahniuk, ou "O Poder Comercial da Fé"


Por RICARDO CAVALCANTI

Quem é o melhor autor de livro de auto-ajuda que você conhece? Alguns podem dizer que é Augusto Cury, outros apontam Lair Ribeiro, enquanto outros ainda vêem no Paulo Coelho esse perfil. O que todos eles têm em comum, é o fato de mostrar para você que tudo pode ser superado com a sua força de vontade, pois você é uma estrela que nasceu para brilhar; só lhe faltando conseguir enxergar isso. A partir de então, tudo se tornará maravilhoso e belo.

Talvez isso possa parecer bastante tedioso para alguns (eu, por exemplo), causando uma repulsa de forma natural e inconsciente. Talvez você não precise que alguém te diga que você é especial. Não existe um segredo que faz as coisas darem certo para você. Não existem fórmulas mágicas que te façam ser mais do que você realmente é. Ouvir algo como “Vocês não são especiais. Vocês não são um belo ou único floco de neve. Vocês são feitos da mesma matéria orgânica em decomposição como tudo no mundo.” faz um pouco mais de sentido que ouvir que você é especial. Bom, se tudo mundo é especial, isso significa que ninguém é especial.

Nada melhor do que esfregar a realidade na sua cara e te fazer reagir, pensar, te sacudir por dentro, destruindo sua visão bela e romantizada do mundo e de si mesmo. Quanto a isso, não existe ninguém melhor que Chuck Palahniuk para fazer esse papel. O responsável por sacudir os brios de uma geração vazia em Clube da Luta volta com sua narrativa afiada como uma faca, que acaba nos acertando em pontos sensíveis de nossas certezas.



Chuck Palahniuk é um dos autores preferidos do Zona Negativa; por isso que de vez em sempre quando falamos de seus livros. Já viraram post por aqui: Clube da Luta, Clube da Luta 2, Assombro e publicamos o conto Tripas, num dos nossos “Encheção de Lingüiça do Bem”. Em Sobrevivente, lançado em 1999 (mesmo ano da estréia nos cinemas do filme Clube da Luta), Palahniuk mais uma vez aproveita para demonstrar sua peculiar visão sobre a sociedade e a forma com que interagimos com ela. Com um humor ácido corrosivo, o autor vai destilando seu veneno e apontando a sua metralhadora giratória em várias direções. Inclusive para você.

Sentimos saudades daquilo que jogamos no lixo porque temos medo de evoluir. Crescer, mudar, perder peso, nos reinventar. Adaptar-nos” 

Enquanto em Clube da Luta o livro se inicia com o narrador sem nome com uma arma apontada para a boca; e vai te explicar como chegou até aquela situação, em Sobrevivente, o narrador, que nesse caso tem nome, Tender Branson, está em uma situação bastante semelhante. Rumando sem destino pilotando um avião que seqüestrou, pretende voar até acabar o combustível e cair. Enquanto isso, está gravando uma espécie de carta de suicídio para ser ouvida depois que encontrarem no meio dos destroços, a caixa-preta com toda a sua história. Branson era membro da Igreja do Credo, que entre suas doutrinas, dizia que só era possível encontrar a salvação através do trabalho; até chegar o momento em que receberiam um chamado de Deus e todos deveriam cometer suicídio.

Palahniuk está em plena forma, com toda acidez diluída em suas páginas; usando e abusando de seu cinismo mordaz, em uma sequência de pauladas, ganchos, socos, chutes e pancadas em forma de palavras. Nós acabamos nos sentindo como se estivéssemos servindo de sparring para algum boxeador peso pesado. Impossível não ficar tonto com tanta pancada.

“...você percebe que se não está no vídeo, ou melhor, ao vivo, via satélite, diante de todo o mundo, você não existe. Você é aquela árvore caindo na floresta para a qual todos estão pouco se fodendo. Não importa se você fez algo. Se ninguém viu, sua vida se torna um grande zero. Um nada.” 

Pode parecer uma questão existencialista um pouco distante e datada (quem hoje em dia liga muito para estar na TV? Mas podemos adaptá-la mais para a cara dos dias de hoje. Repare na imensa quantidade de gente que coloca toda sua vida nas redes sociais, como se ser aceito, fosse extremamente necessário para a própria sobrevivência. Uma forma moderna e patética de justificar a própria existência. Mesmo algumas sendo remuneradas para isso, mostram nada além de uma vida superficial e tola, baseado em um ideal de harmonia e felicidade que só existem na ficção.



De acordo com a Igreja do Credo, todos os filhos mais velhos eram os únicos que poderiam se casar e viver na aldeia; enquanto os outros filhos, assim que completassem dezessete anos, iriam todos embora. Adam era irmão gêmeo de Branson e um dos “anciões da aldeia, mesmo tendo trinta e poucos anos e tendo nascido cerca de três minutos antes. Seu irmão visitou o mundo fora da aldeia e passava sua peculiar leitura do que esperar fora da comunidade de Igreja do Credo. Acredito que em alguns momentos, era o próprio Palahniuk falando pela boca de Adam.

As pessoas usavam um negócio chamado telefone porque odiavam estar perto umas das outras, e porque morriam de medo de ficar sozinhas.” 

Hotel, ele me disse, era uma casa grande onde muitas pessoas moravam, comiam e dormiam, mas ninguém se conhecia. Ele disse que isso descreveria a maioria das famílias no mundo lá fora.”

"As igrejas no mundo lá fora, meu irmão disse, eram apenas lojas locais que vendiam mentiras feitas nas fábricas distantes das grandes religiões." 

Uma crítica ferrenha e cáustica, carregada com todo o cinismo contestador como só se via em um passado recente (hoje em dia, contestar é praticamente um crime). Antes de o mundo ter sido virado de cabeça para baixo, que fez com que os roqueiros, que sempre foram símbolos de contestação e rebeldia, se transformassem em pessoas tão retrógradas quanto o bisavô de seus pais, e o Papa ser a pessoa de mente mais aberta, propondo mudanças e quebra de paradigmas.


Estamos mais do que nunca, numa era de apatia em que contestar algo te transforma imediatamente num vilão. Onde estão os artistas que não seguem essa cartilha de bom-mocismo? Os que quebravam quarto de hotéis, os que viviam intensamente, pois só assim conseguiriam sobreviver. Antigamente os ídolos morriam jovens como Jim Morrison, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Amy Winehouse, Cazuza. Não que eu aplauda a vida autodestrutiva desses personagens; só acho que eram visceralmente autênticos. Não acredito que alguém possa sempre falar as coisas certas o tempo inteiro e estar sempre com um sorriso no rosto, sem que esteja camuflando sua verdadeira vontade. Tenho medo dessas pessoas e do que elas escondem. Medo do que não é real. Mas deixa eu parar de reclamar como um velho rabugento. 
 



Tender Branson é meio gordinho e meio esquisito. Por conta de alguns eventos envolvendo a Igreja do Credo, acaba sendo transformado em uma espécie de novo messias; um profeta para uma nova geração. Para isso precisa se transformar em algo maior; em algo melhor. Precisa cuidar da sua saúde, precisa cuidar de sua aparência, tudo que é dito é minuciosamente pensado por seus agentes, seguindo uma programação para o sucesso. Passa a ter livros entre os mais vendidos, lotando estádios com pessoas esperando ouvir suas palavras; falando na TV no horário mais concorrido. Enquanto parece uma espécie de Forest Gump que na maior parte do tempo, parece não ter ideia do que realmente está acontecendo ao seu redor, só replicando o que foi “programado” para fazer.

Capa da primeira edição de Sobrevivente.
Editora Nova Alexandria

Um dos alvos, o principal na verdade, são as formas de exploração da fé das pessoas. Indivíduos desesperados e perdidos no mundo, em busca de um salvador que resolverá os seus problemas, ou um messias que trará sentido às suas vidas. Essas pessoas acabam se tornando presas fáceis em um mundo cada vez mais mercantilista. Tudo se torna objeto de consumo. Tudo está à venda. Tudo pode ganhar uma roupagem perfeita para que possa ser consumida com facilidade. Não podemos seguir e admirar alguém com falhas; alguém que não seja perfeito, de uma forma que nunca seremos. No fim das contas, não é nada além de um produto comercial que será explorado à exaustão. É claro, até um produto mais novo e com uma embalagem mais moderna aparecer e tornar o anterior descartável e ultrapassado.


O livro está sendo adaptado para se tornar uma série de TV. A boa notícia é que Jim Uhls, roteirista da adaptação de Clube da Luta para o cinema, está trabalhando no desenvolvimento da primeira temporada. Depois do 11 de setembro, imaginar a adaptação de uma história que já começa com um avião sendo seqüestrado, me parece bastante complicado de ser aprovada. Acredito que esta parte será suprimida. Mas vamos aguardar e esperar pelo pior.

Capa da nova edição.
Ed. Leya

Em Sobrevivente, existem momentos hilários cheios de humor negro, principalmente quando Branson se vê atendendo as ligações de pessoas que... Bom, é melhor não estragar as surpresas. Não espere um novo Clube da Luta (essa obra já saiu, foi em formato de HQ, e temos uma resenha sobre ele. Só posso adiantar que a continuação não chega perto da obra original), mas em Sobrevivente, vemos que, mesmo que em alguns momentos lembre um pouco sua obra mais conhecida, Palahniuk prova que ainda estava com muita lenha para queimar - o que acabou se provando ao longo do tempo. Esta é, certamente, uma obra que não pode faltar na sua lista, se você for fã do autor, ou se tiver interesse em conhecer. Ainda falaremos mais dele aqui no ZN. Enquanto isso, você pode mergulhar na história sem medo, mas esteja preparado para as pancadas que vai levar.


domingo, 28 de maio de 2017

UM PASSEIO EM PROVIDENCE! Via Innsmouth, Red Hook, Dunwich, Carcosa, R’lyeh......


Por EDUARDO CRUZ




Quem não estava escondido embaixo de uma pedra em uma caverna subterrânea ou filosofando com o Dr. Manhattan na superfície de Marte provavelmente já sabe que a Panini finalmente lançou nesse mês de maio a primeira terça parte de Providence, uma mini série em 12 edições que saiu lá fora pela Avatar Press, e que aqui vai sair em 3 encadernados. Ansiosos? 

Podem apostar que eu sim! Pra quem não sabe, Providence é, ao mesmo tempo, prelúdio e continuação de Neonomicon, uma HQ onde Moore presta homenagem a toda a mitologia criada por esse escritor norte americano. E não é segredo nenhum que esse autor, que criou o subgênero de horror cósmico, Howard Phillips Lovecraft, é um de nossos grandes favoritos aqui na Zona Negativa! 






Em Providence acompanhamos a jornada de Robert Black, um repórter nova iorquino, homossexual, que logicamente, devido às pressões da sociedade da época, é obrigado a esconder sua condição, vivendo uma vida diferente sob a superfície. Robert trabalha em um jornal, o New York Herald, porém, sempre se sentiu compelido a escrever seu próprio grande romance, aquele que iria captar e cristalizar com precisão a essência e a época de seu país e seu povo, na América de 1919, às vésperas da Lei Seca e a poucos anos do Crash da Bolsa de Valores que assolaria a nação de um modo sem precedentes.





Em busca de um artigo para seu jornal a respeito de um misterioso livro supostamente amaldiçoado, e ainda abalado com a morte repentina de um ex amante, Robert acaba pondo o pé na estrada e pouco a pouco desbrava todo um submundo de indivíduos à margem da sociedade que trocam informações e conhecimentos sobre ciências ocultas, pessoas atípicas, excêntricos e freaks em geral, e em alguns casos até mesmo indivíduos que não poderíamos classificar exatamente como pessoas. Black, sem se dar conta, acaba empreendendo uma viagem por toda uma América oculta sob a superfície, em uma analogia nada sutil ao próprio universo encoberto a que o protagonista pertence, em uma época em que a palavra “gay” significava apenas “alegre”. A grande diversão nessa homenagem de Moore ao legado Lovecraftiano é acompanhar Black em busca de sua reportagem, peregrinando pelas cidades onde Lovecraft ambientou muitas de suas grandes histórias, se encontrando com os personagens chave dessas histórias, edição a edição, em uma romaria profana, que sabe-se lá como vai ser concluída. Aí, é ter paciência e torcer para que a Panini não demore muito a publicar o restante da série <coff, coff, coff PROMETHEA coff, coff, coff, coff...>.





E aí vem a pergunta: Dá pra ler Providence sem conhecer a obra de H.P. Lovecraft? Olha, até dá, mas devo avisar que MUITAS referências legais vão se perder, e com um trabalho assim fantástico, isso não é nada legal. Um desperdício, eu diria. Por isso, fizemos uma pequena relação das histórias de Lovecraft que o leitor teria que conhecer previamente para aproveitar ao máximo a mini série de Moore. Reitero que isso não é obrigatório e Providence ainda funciona como uma ótima história de mistério/terror por si só. Porém como se trata de uma mini série que é essencialmente referencial, como A Liga Extraordinária, outro grande título de Moore, muitos outros significados e leituras se revelam ao leitor atento que investir só mais um pouquinho de tempo pra ler alguma coisa do material de onde a HQ foi inspirada.







Não fiz uma varredura ampla como aquele gringo maluco que destrinchou o “Dossiê Negro” da Liga Extraordinária TODO, por exemplo. Em cada edição de Providence Moore passeia por um conto ou romance específico de Lovecraft, ou sejE, cada conto de Lovecraft é a espinha dorsal de uma edição, com a mitologia geral Lovecraftiana amarrando tudo. Claro que há muitas outras referências menores entre os diálogos, e não apenas de H. P. Lovecraft, mas não vamos passar um pente tão fino assim, amiguinhos. Nesse post vou indicar somente essas histórias chave, e quem se interessar em se aprofundar mais que fique à vontade. Os cata-piolhos que encontrarem alguma coisa que valha a menção e que porventura eu não tenha citado aqui, por favor, sintam-se à vontade para comentar lá embaixo!





Então arrumem um canto sombrio pra se acomodar para a leitura, preparem sua coletânea de contos de H. P. Lovecraft (Nesse link tem todos os contos citados no post) do lado do encadernado de Providence, entoem uma pequena oração para Yog-Sothoth, acendam os incensos certos, tracem os símbolos apropriados e vamos começar, ou sejam condenados para sempre...







PROVIDENCE #1


Na primeira edição, ainda em Nova York, Black localiza e entra em contato com um certo Dr. Alvarez, que lhe dá algumas pistas para seguir seu caminho. O conto “Vento Frio”, escrito em 1926 e publicado em 1928 na revista Tales of Magic and Mystery, é a história relacionada a este misterioso personagem, que no conto chama-se Dr. Muñoz, um médico que, alegando sofrer de uma rara doença, precisa manter-se resfriado a temperaturas muito baixas. No conto conheceremos um pouco mais do elusivo Dr. Muñoz e como ele ludibriou a morte...







PROVIDENCE #2


Seguindo a história, nessa edição vemos Black se relacionando com personagens como o detetive de polícia Thomas Malone e o comerciante de textos ocultistas Robert Suydam, ambos oriundos do conto “O Horror em Red Hook”, escrito em 1925 e publicado em 1927 na revista Weird Tales. Um mistério policial – onde vemos a xenofobia de Lovecraft vir à tona: o escritor morou por um tempo em Nova York e o grande volume de estrangeiros e imigrantes o incomodava – envolvendo cultos obscuros, sacrifícios de crianças e criaturas estranhas escondidas nos porões do bairro...








PROVIDENCE #3


Continuando a jornada de Black, chegamos a um estranho vilarejo portuário que não consta nos mapas, onde seus habitantes, bastante reservados, têm, em sua grande maioria, feições que se assemelham a peixes, e até mesmo a sapos... e o que são aqueles vultos nadando no mar a que Robert se refere como “focas”? Em “A Sombra de Innsmouth”, história escrita em 1931 e publicada em 1936, conheceremos mais detalhes a respeito deste desolado e malcheiroso vilarejo à beira mar, e os segredos pavorosos escondidos por detrás das portas e janelas fechadas...






PROVIDENCE #4


Fechando este primeiro encadernado nacional de Providence, Robert, no encalço das pistas de sua investigação, conhece a família Whateley. A origem dos Whateley é o conto “O Horror de Dunwich”, escrito em 1928 e publicado em 1929. A bizarra família é composta pelo velho patriarca, sua filha albina, Lavinia (Na HQ de Moore renomeada para “Leticia”), e seus dois filhos: Wilbur (na HQ é conhecido como Willard), um rapaz com feições de bode e uma estranha avidez por conhecimento oculto, e seu irmão gêmeo, que é invisível, e acreditem, talvez seja melhor não ver sua real aparência. Algumas coisas não podem ser esquecidas depois de vistas...






Ainda nesta edição, uma rápida referência ao conto "A Cor Que Caiu do Espaço", a história de invasão alienígena mais estranha, maligna e repugnante já escrita. Esse conto é de 1927, publicado no mesmo ano na revista Amazing Stories





BÔNUS:

Além das óbvias referências e homenagens ao próprio Lovecraft, consegui pescar mais algumas pequenas pérolas nessa primeira leitura de Providence, como uma menção a outro mestre do suspense e horror na literatura: Edgar Allan Poe.



Também há algumas menções ao Rei de Amarelo, livro de 1895, criação de Robert Chambers, uma das influências do próprio Lovecraft como escritor. Quem assistiu à primeira temporada de True Detective faz uma idéia do que vem a ser essa obra de horror cósmico pré-Lovecraft.

O rei de Amarelo

Os apêndices entre as edições, com textos diversos relacionados à trama, como o diário do protagonista, ou um panfleto de igreja, ou um tratado de ocultismo ajudam a imergir o leitor ainda mais na história. Ou pelo menos deveriam: em Providence os apêndices podem ser um tanto cansativos em alguns momentos. Os conteúdos extras que Moore costuma produzir para suas histórias já foram bem melhores, como os de Watchmen, ou O Dossiê Negro da Liga Extraordinária, muito mais interessantes e funcionais para a própria trama principal são OK. Mas entre esses textos, destaco a menção a O Livro dos Lobisomens, do inglês Sabine Baring-Gould, um tratado sobre licantropia publicado em 1889, do qual há uma breve menção, e recomendo a leitura. Afinal, nunca se sabe quando ser capacitado a identificar alguém que se transforme na lua cheia pode vir a ser conhecimento útil ;>).


Enfim, isso é só um ponto de partida para vocês terem uma mínima idéia do que se passa em Providence! Nessas primeiras quatro edições do encadernado, Moore mal arranhou a superfície do vasto cânone de Cthulhu e Cia, e estamos ansiosos por mais!



Quanto mais você se dispuser a chafurdar na bibliografia de Lovecraft, e também de seus colegas escritores, como Robert Bloch, Robert E. Howard, August Derleth e outros, mais e mais referências serão captadas, porque acreditem, se Moore não perdeu a mão, Providence está carregada de referências em suas páginas! A partir daí é você quem decide se vai se aventurar assim tão fundo nesses horrores inomináveis e blasfemos, ou se vai ficar só boiando na superfície mesmo, onde é mais seguro... ou não?



P.S.: Para quem sabe inglês e quiser uma relação enorme das referências contidas na HQ, se aventure nesse site!


segunda-feira, 22 de maio de 2017

CORAÇÃO SATÂNICO, de William Hjortsberg, ou “Um Hellblazer Noir com a melhor história de John Constantine jamais produzida pela Vertigo/DC Comics"




Por EDUARDO CRUZ INVERTIDA






Não se pode enganar o Diabo.

Isso é um fato. Ou pelo menos, um fato dentro dos universos ficcionais rs. As melhores histórias sobre o assunto são aquelas que comprovam a máxima acima. Não dá pra ter uma história que envolva o próprio Chifrudo como personagem central E ter um final feliz ao mesmo tempo.

O Tinhoso está aí desde sempre. Segundo os teólogos, o Cramulhão é muito mais antigo que o próprio homem, então seria muita presunção crer que uma pessoa, por mais inteligente e experiente que seja, fosse capaz de passar a perna no Pai da Mentira. E é também por causa desse adágio que eu acho perfeitamente compreensível quando alguém não concorda, por exemplo, com o rumo que Garth Ennis deu ao personagem John Constantine, sempre às voltas com ocorrências demoníacas em suas histórias, quando livrou o personagem de um câncer terminal bolando uma trama intrincada onde Constantine ludibria três grandes entidades infernais e ainda lava a alma dando o dedo médio para o Primeiro dos Caídos, no já clássico arco “Hábitos Perigosos”, láááááá nos anos 90, na falecida revista "Vertigo", da editora Abril.


Foi divertido? Foi! 
Foi Massavéio? À beça! 
Ainda me lembro de quando era garoto juvenil e vibrei com essa saída para uma situação que parecia levar ao fim do personagem e ao encerramento do título, mas analisando friamente, quais são as chances de uma pessoa que viveu trinta e poucos anos, ou sessenta, ou mesmo cem, de ter qualquer vantagem estratégica sobre uma inteligência não humana, e que em escala de poder fica abaixo apenas de seu próprio criador que, dizem, é o criador de todo o resto também? rs

Agora, se você admite essa possibilidade, ou melhor, a IMpossibilidade de uma história em que o protagonista engane o Cabrunco e saia inteiro pra se gabar, e fica se perguntando que rumo uma história assim pode tomar, tenho uma ótima recomendação: Coração Satânico, de William Hjortsberg!

"É como se Raymond Chandler tivesse escrito 'O Exorcista'. Fabuloso. Nunca li nada igual."
Stephen King

Na verdade, Coração Satânico foi uma recomendação do Ricardo C., o outro zelador da Zona Negativa. Ele adora tanto o livro quanto o filme, e insistiu que eu lesse a história. Eu conhecia apenas o filme, como 90% das pessoas que ouvem falar em Coração Satânico. “Mas então porque é você escrevendo essa resenha, e não ele, que conhece o livro há muito mais tempo que você?”, vocês vão perguntar. Bem, se a vida fosse justa, seria um texto dele, mas fui tentado pelo Pé-de-Bode, e bati com uma pedra em sua cabeça enquanto ele estava distraído trabalhando em algum outro texto. E assim Caim matou Abel.



A trama de Coração Satânico é ambientada na década de 1950, e a história é narrada em primeira pessoa por seu protagonista, Harry Angel, um detetive particular que é contratado pelo enigmático Louis Cyphre (sacaram?? sacaram????) para localizar o paradeiro de um músico, Johnny Favorite. A princípio, o que parecia ser mais um caso rotineiro degenera lentamente, à medida que a história avança, para mistérios, mortes, rituais sangrentos e tenebrosos de vodu no Central Park à noite, muitos pentagramas invertidos, magia negra e o que parece ser a mão do próprio Príncipe das Trevas encadeando cada vez mais acontecimentos macabros, que culminam em... bem, não vou me estender nos detalhes nem dar spoilers, ou corro o risco de acabar sufocado com meus próprios genitais decepados ;>)

E não se deixem enganar pelo clima de romance policial noir à primeira vista: o que começa como um romance de Mike Hammer, com ruelas escuras, becos esfumaçados, intrigas, mulheres fatais e crimes violentos rapidamente toma contornos  dignos de um arco de John Constantine: Hellblazer à medida que a investigação de Angel avança e ele desvela pouco a pouco o mistério de Johnny Favorite, e paralelamente, mistérios sobre si próprio. O detetive particular da história segue à risca a cartilha do típico detetive do gênero American Crime Novel: durão, fumante inveterado, beberrão, bom de briga e que muitas vezes recorre a métodos e recursos à margem da lei para levar seu trabalho a cabo. 

A revelação do mistério e o clímax da história são superiores e muito mais diabólicos do que muitas das fases de Hellblazer, que em suas 300 edições publicadas, teve seus altos (Jamie Delano, Andy Diggle, Warren Ellis) e baixos (Mike Carey, Denise Mina). É uma história cuja leitura é um deleite, num ritmo nem muito lento, nem corrido demais. A impressão que se tem desde as primeiras páginas é que Hjortsberg tem perfeito controle do ritmo da história que está contando. Eu mesmo li bem mais devagar que o de costume, apenas para que o livro não acabasse tão rápido rs.

Em 1987 foi produzida uma adaptação cinematográfica, roteirizada e dirigida pelo competentíssimo Alan Parker (Mississipi em chamas, Pink Floyd – The Wall, O expresso da meia noite). O roteiro de Parker, apesar das pequenas modificações (como por exemplo, transpor parte da história para o estado da Louisiana, provavelmente para legitimar ainda mais o contexto das religiões africanas na trama, ou mais provavelmente porque certas cenas chave do livro são infilmáveis, como a cena da missa negra que Angel presencia em uma estação de metrô abandonada, onde acontece TUDO que se pode esperar de uma verdadeira missa negra!), conserva com perfeição o ritmo do livro no que tange à investigação de Angel e todos os eventos tétricos que acontecem pelo caminho, bem como mantém o final macabro, que escancara o inferno bem na nossa cara. Se não tiver paciência para ler o livro, - o que eu acho um pecado, até mesmo no inferno – o filme também não decepciona. Muito pelo contrário. O Louis Cyphre interpretado por Robert De Niro é magnífico, com doses cavalares de mordacidade, sarcasmo e deboche pela criação divina, e seu joguinho com Angel lembra muito um gato brincando com uma barata: sádico, atrevido e agindo como se tivesse todo o tempo do mundo. A cena em que Harry Angel, (interpretado pelo galã hoje deformado Mickey Rourke) encontra Cyphre em uma igreja dá o tom de um dos melhores Cramulhões já interpretados no cinema. Nota 10! AdEvogado do Diabo??? Al Pacino se cagaria de medo do Cabrunco do Robert De Niro! 

"Há religiões suficientes para os homens se odiarem, mas não o bastante para se amarem."
Louis Cyphre



 

Robert De Niro como Louis Cyphre e Mickey Rourke no papel de Harry Angel

No Brasil, Coração Satânico foi publicado em 1987 pela editora Best Seller e estava esgotado há vários anos, sendo considerado uma raridade entre os colecionadores. Mas uma nova edição foi lançada pela Darkside Books, atualmente uma das editoras mais expressivas nesse nicho de horror, que resgatou o livro do Fosso Sem Fundo para publicá-lo em mais uma magnífica edição, com acabamento e projeto gráfico irrepreensíveis, o que já é uma marca registrada da editora. Eis uma edição pra Sete-Peles nenhum botar defeito!

Capa da primeira edição brasileira de Coração Satânico, de 1987

Uma história fantástica, poderosa e carregada de simbolismos. Um híbrido perfeito entre os gêneros policial e horror. Não se esqueçam de matar uma galinha e acender umas velas pretas para dar graças por essa bênção, pessoal.