domingo, 7 de maio de 2017

A CIDADE E A CIDADE, de China Miéville, ou "Ficção para Enxergar a Realidade Dentro da Realidade"



Por RICARDO CAVALCANTI

 O inglês China Miéville é um dos autores mais badalados do chamado “New Weird” (gênero que está dando uma nova roupagem à “ficção do estranho” ou “ficção do bizarro” desenvolvido por autores como H. P.Lovecraft) e que vem ganhando cada vez mais espaço na ficção científica e fantasia. Apesar de sua aparência ameaçadora, lembrando muito os Hooligans ingleses, ou um Skinhead mais radical, esse escritor prova que nada tem a ver com impressão que se tem à primeira vista, e que a imagem que passa não está nem um pouco ligada à sua personalidade. Miéville é formado em Antropologia Social pela Universidade de Cambridge, com Mestrado e Doutorado em Filosofia do Direito Internacional pela London School of Economics, professor da Universidade de Warwick, além de um ativo militante de esquerda e marxista de carteirinha (para alguns, isso pode soar como um crime).

O autor já teve seu romance “Rei Rato” lançado por aqui pela Tarja Editorial, mas infelizmente está esgotado e, quem tem não se desfaz. Agora temos seu premiado romance “A Cidade e a Cidade” chegando através da Boitempo Editorial, que vai publicar todos os seus livros no Brasil (não existe editora que se encaixe melhor no perfil do autor, que a Boitempo). A obra foi vencedora de vários prêmios, entre eles o Nébula Award, Arthur C. Clarke Award, Hugo Award (o mais importante do gênero) e World Fantasy Award, só para citar alguns.
O troféu da World Fantasy Award é a reprodução da imagem do nosso amigo H. P. Lovecraft
Todo escritor inglês que se preze, precisava dar uma passadinha na Vertigo para dar a sua contribuição na revista Hellblazer. Com ele não foi diferente. Na edição 250, Miéville escreve a história “O Cair da Neve”, que saiu por aqui na Vertigo #43, lançado pela Panini em junho de 2013. Para a DC Comics, trouxe sua leitura para o mundo dos Novos 52 de “Dial H for Hero” (cultuada HQ dos anos 60), chamada apenas de Dial H. A sinopse já alimenta a nossa curiosidade.O que aconteceria se você descobrisse um poderoso artefato que o transformasse em um super-herói? E se esse dispositivo ameaçasse o mundo inteiro? As capas parecem uma mistura de Homem Animal e Patrulha do Destino do Grant Morrison. Lá fora, chegou a sair uma edição de luxo de 368 páginas com toda a elogiada fase do autor. Ainda nos Novos 52, escreveu um dos episódios de Vilania Eterna, na Revista da Liga da Justiça edição #23.3.



Falar sobre A Cidade e a Cidade não é uma tarefa das mais simples. Como falar sobre uma história em que, qualquer coisa a ser dita, pode acabar se revelando pontos importantes da trama? A própria sinopse da editora, já nos deixa no limite do que deve ser dito. Mas o que podemos dizer sem que isso diminua seu impacto, é que se trata de um romance policial no estilo Noir, que a princípio parece mais uma simples história sobre investigações de um assassinato. A história é narrada pelo investigador Tyador Borlú, detetive da cidade-Estado chamada Besźel, que se depara com o corpo de uma mulher não identificada. Nada de extraordinário em mais um dia de trabalho policial.

Borlú acaba tendo que continuar a investigação e, aos poucos, percebe que muitas pessoas poderiam ter motivação para desejar a morte dela. Algumas pistas começam a surgir e que são um pouco fora do normal. O corpo da mulher foi encontrado em uma cidade, mas ao que tudo indica, o crime aconteceu em outra cidade-Estado, Ul Qoma. A princípio, podemos imaginar que aconteceu algo como a “malandragem” brasileira mostrada no filme Tropa de Elite 2, em que o batalhão da Maré 2 joga o corpo na área de Maré 1 para diminuir seu índice de criminalidade, e vice-versa. Mas as coisas são um pouquinho mais complexas que isso.

São duas cidades muito distantes e muito próximas ao mesmo tempo. Cada uma com sua própria língua, com sua própria moeda, seus próprios costumes, diferentes aeroportos, códigos de discagem internacionais. Tudo completamente diferente e funcionando de forma independente. O que acontece em uma cidade, obviamente não é visto pela outra. Elas não fazem fronteira uma com a outra, mas possuem algo que as liga e conecta. O que ambas têm em comum, além de estarem em um país fictício do Leste Europeu, é apenas um pequeno detalhe: As duas estão no mesmo lugar, ocupando o mesmo espaço físico. As ruas, as praças, os prédios. Os carros andam pelas ruas, desviando dos veículos da outra cidade. Os pedestres fazem o mesmo com os habitantes da outra cidade.


Não se trata de realidade paralela. As duas sabem da existência uma da outra. No entanto, ir de uma cidade para outra, trafegando entre seus limites, não é tão fácil como se possa imaginar. Você me pergunta: “já que as duas cidades estão no mesmo lugar, como elas não vêem a outra cidade?” Bom.. Nesse caso, parte da experiência da leitura está em ir descobrindo com o desenrolar da trama, o funcionamento, a relação e a dinâmica entre as duas cidades e seus habitantes; e como tudo vai fazendo certo sentido, na medida em que a história vai se desenvolvendo.

Com uma excelente narrativa recheada de intrigas, suspense e conspiração, China Miéville ultrapassa as fronteiras de realidades na forma de um romance policial que toma dimensões extraordinárias, construindo uma excelente metáfora para o que acontece no dia a dia em nossas cidades. Mostrando na história (assim como na vida real) que existe um muro invisível e intransponível, separando cidades dentro da cidade; um muro que segrega, afasta e exclui. Não se trata de um proselitismo tendencioso, nem uma doutrinação panfletária. Usar alegorias para apontar as nossas dissonâncias sociais ou fazer uma crítica às desigualdades produzidas a partir de nossa interação com a sociedade é bastante comum na ficção. A sutileza do texto flui de forma orgânica, além de tornar a leitura extremamente prazerosa (seja lá qual for a ideologia política de quem lê). Caso suas convicções destoem da ideologia do autor, não se deixe privar de ter uma experiência em conhecer sua obra. A não ser que prefira passar o seu tempo batendo palma para a notícia de que "recessão e desemprego aumentam o poder de compra", ou ficar fazendo blitz em escolas municipais, para que não seja propagada outra ideologia que não seja a sua.

“A Cidade e a Cidade” pode ser lido com várias perspectivas diferentes. Você pode simplesmente encarar como uma diferente história policial - com todos os elementos necessários para agradar aos amantes do gênero; pode ser lido como um ponto de reflexão social - considerando de que na história, não é nada tão fantasioso quanto parece; Ou você pode usar como um ponto de entrada para as obras do autor. A "BBC Two" anunciou a adaptação do romance para a TV, tendo o ator David Morrissey interpretando Tyador Borlú. O ator interpretou o Governador em The Walking Dead.

Um importante ponto que deve ser destacado, é a fato de a Boitempo ter escolhido o "quase onipresente" Fábio Fernades como o responsável pela tradução desta obra. Especialista em ficção científica, traduziu grande parte das maiores obras do gênero, como Laranja Mecânica, Neuromancer, 2001 - Uma Odisseia no espaço, a Trilogia Fundação, O Homem do Castelo Alto. Só para citar alguns. 

Agora retire a venda dos olhos, saia da cidade e entre na cidade e veja a cidade dentro da cidade, dentro da cidade, dentro da cidade...

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